Professor da rede pública estadual expõe contradições da militarização de escolas no Paraná
Pesquisa do professor Italo Zanelato é a primeira do país a analisar o modelo implantado pelo governador Ratinho Jr. e suas implicações sobre a educação
Publicado: 18/06/2025 17:04 | Última modificação: 18/06/2025 17:04
Escrito por: App Sindicato

A militarização de escolas da rede pública paranaense é o tema da tese de doutorado do professor Italo Zanelato, a primeira do país a analisar o modelo implantado pelo governador Ratinho Jr. e suas implicações sobre a educação. A tese “Nossa Escola Não é Caso de Polícia – Uma Análise Histórica da Militarização dos Colégios Públicos e Civis do Paraná (2019-2025)” investigou o processo de implantação do modelo militarizado de educação no Paraná, como desdobramento do crescimento do neoliberalismo, neofascismo e neoconservadorismo.
A tese foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá (UEM). A defesa acontecerá no dia 28 de junho, às 9 horas, no Bloco H-12, Sala 115 da UEM. A APP-Sindicato conversou com Italo para antecipar alguns aspectos da pesquisa, que ainda não pode ser divulgada integralmente.

APP-Sindicato: Por que esse tema, entre tantos?
Italo Zanelato: Escolher um tema no campo das Ciências Humanas está diretamente ligado à nossa trajetória de vida, identidade e à maneira como interpretamos a realidade. A decisão de pesquisar a militarização das escolas públicas do Paraná surgiu de um incômodo real e pessoal. Sou professor da Educação Básica desde 2012 e vivi, junto a colegas, as tensões provocadas pelas políticas neoliberais implementadas pelo governo Ratinho Jr, especialmente no contexto da militarização escolar.
Mesmo durante a pandemia, os processos de “consulta pública” para a implantação dos Colégios Cívico-Militares foram conduzidos sob vigilância da Secretaria Estadual de Educação e dos Núcleos Regionais de Educação, gerando insegurança e dúvidas nas comunidades escolares. Diante desse cenário, fiz o que muitos professores fazem como forma de resistência: fui estudar. Procurei artigos e pesquisas, e percebi, em 2021, que havia ainda pouca produção acadêmica sobre o tema, sobretudo no contexto paranaense.
Minha trajetória como ex-aluno da escola pública, professor e integrante da classe trabalhadora me moveu a transformar esse incômodo em objeto de pesquisa. Pesquisar esse tema, portanto, é um gesto político, ético e pedagógico.
APP-Sindicato: É a primeira tese de doutorado sobre esse tema no País?
Italo Zanelato: Não, já existem pesquisas relevantes sobre a militarização das escolas públicas em outros estados do Brasil. Como é o caso do estado de Goiás, que vivencia esse modelo desde a década de 1990. No entanto, esta é a primeira tese a investigar de forma sistemática, a implantação dos Colégios Cívico-Militares no Paraná.
A originalidade da pesquisa está na abordagem que articula a militarização escolar com os movimentos amplos: neoliberal, neoconservador e neofascista, presentes nas políticas educacionais atuais. A análise busca ultrapassar a mera descrição do modelo para compreender os projetos de sociedade e de educação que estão em disputa e que esse tipo de política pretende consolidar.
APP-Sindicato: Por que o recorte temporal de 2019 a 2025?
Italo Zanelato: O recorte temporal de 2019 a 2025 foi definido com base no contexto específico do Paraná. O ano de 2019 marca o início oficial da implantação dos Colégios Cívico-Militares, tanto no Brasil com o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, quanto no estado, sob o governo de Ratinho Jr. Já 2025 é o ponto final da análise, pois inclui documentos oficiais produzidos nesse ano, permitindo uma leitura atualizada das políticas implementadas.
No entanto, para compreender os fatores que possibilitaram a militarização das escolas, foi necessário ampliar a análise para além desse intervalo. A pesquisa retoma a crise estrutural do capital iniciada em 2007-2008; os desdobramentos políticos a partir de 2013, com o fortalecimento da extrema-direita no Brasil; e a ascensão dos princípios neoliberais, neoconservadores e neofascistas com o governo de Jair Bolsonaro. Esses elementos constituem o pano de fundo político e ideológico que sustenta o projeto de militarização da educação pública.
APP-Sindicato: Por que focar no Paraná?
Italo Zanelato: Para mim, escolher o estado do Paraná é um ato ético e político. O território paranaense, enquanto recorte local, trata da minha própria história, afinal, sou paranaense. Se sou um cidadão paranaense, sou também pesquisador paranaense.
A militarização me lembra que os problemas não estão distantes de mim, pois me atravessou no cotidiano profissional, espaços escolares e relatos de colegas trabalhadores da educação de diversos municípios.
Além disso, o Paraná tem um papel central na política nacional de militarização da educação. Enquanto o governo de Jair Bolsonaro previa a implantação de 216 escolas cívico-militares em todo o país até 2023, o governo Ratinho Jr, sozinho, atingiu essa meta em âmbito estadual. Isso transformou o Paraná em um verdadeiro laboratório dessa política, o que torna ainda mais urgente e necessário analisá-lo de forma crítica e aprofundada. O estado tornou-se, portanto, um marco de referência que precisava ser examinado com o devido rigor.
APP-Sindicato: Há de fato inovações no modelo de escolas militarizadas?
Italo Zanelato: O modelo de escolas militarizadas é amplamente divulgado como uma solução mágica para os problemas da educação pública e, em última instância, para questões sociais. O discurso oficial se apoia em valores como “disciplina”, “ordem”, “civismo” e “cidadania”, apresentados como “inovações” pedagógicas que são capazes de transformar a escola.
No entanto, o que se observa na prática é um projeto que molda comportamentos e padroniza condutas, restringindo a liberdade de pensamento e padronização dos corpos. A militarização impõe uma lógica de controle e hierarquia que não dialoga com os princípios democráticos de uma educação transformadora. Ao mesmo tempo, há um esvaziamento dos conteúdos, o que favorece uma formação pragmática voltada aos interesses do mercado.
Em síntese, o que se apresenta como inovação é, na verdade, um processo de atraso pedagógico e político, que responde mais à lógica do autoritarismo e da obediência do que à construção de uma cidadania crítica e participativa.
APP-Sindicato: Quais são as contradições do modelo?
Italo Zanelato: O modelo das escolas cívico-militares é repleto de contradições. Embora seja apresentado como uma solução eficiente para os problemas da educação pública, ele não respeita princípios fundamentais como a liberdade individual, a autonomia dos sujeitos e o desenvolvimento do pensamento crítico. Ao contrário, impõe uma rígida disciplina que modela os estudantes tanto no comportamento quanto nas ideias.
A pesquisa identificou contradições nos próprios manuais e guias orientadores dos Colégios Cívico-Militares. Um exemplo é a promessa de promoção de uma “cultura de paz” por meio de práticas militares, o que, por si só, é paradoxal. Além disso, o ambiente escolar é controlado, vigiado e hierarquizado, o que compromete o direito à liberdade e ao desenvolvimento pleno previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Outro ponto crítico é que o modelo cívico-militar dá origem ao que denominei de “modelo cívico-pragmático”, que prioriza a formação de sujeitos obedientes, disciplinados e adaptáveis às exigências do mercado, em detrimento de uma formação crítica, científica e humanista. Isso acaba por reforçar desigualdades sociais, ao limitar as possibilidades de emancipação dos estudantes, especialmente das camadas populares.
APP-Sindicato: A militarização esvazia o potencial democrático da escola pública?
Italo Zanelato: Sim. A militarização contribui para o esvaziamento do caráter democrático da escola pública, mas não é o único fator nesse processo. Hoje, vivenciamos uma série de ataques à gestão democrática e à autonomia escolar: a plataformização da educação, a retirada do direito de as comunidades escolares escolherem seus gestores, o trabalho docente submetido a metas e indicadores de desempenho, entre outros. A militarização é mais uma dessas frentes, e talvez a mais simbólica, por sua natureza autoritária e disciplinadora.
A escola pública, enquanto espaço de formação cidadã, deveria garantir o debate, o contraditório e a construção coletiva do conhecimento. No entanto, os movimentos oriundos do neoliberalismo, do neoconservadorismo e do neofascismo, têm enfraquecido essas práticas democráticas, substituindo o diálogo por mecanismos de controle, padronização e vigilância, a serviço de interesses ideológicos e mercadológicos.
Um exemplo disso ocorreu durante a pandemia: muitas comunidades escolares foram chamadas a “legitimar” a implantação dos Colégios Cívico-Militares por meio de processos de votação simplificados e supervisionados por instâncias governamentais, sem debate público, sem escuta, sem contraditório. Reduzir a democracia ao ato de votar “sim” ou “não” é desrespeitar seu princípio essencial, que é o diálogo. Se não há espaço para o contraditório e para o debate, não há, de fato, democracia.
APP-Sindicato: Você examinou as orientações pedagógicas direcionadas aos militares que atuam nos CCM. Pode comentar o que encontrou, citando casos concretos?
Italo Zanelato: Antes de tudo, é importante destacar que minha pesquisa não tem como objetivo central criticar os militares, mas analisar criticamente o projeto político-ideológico da militarização da educação. Como um dos aparelhos ideológicos do Estado, as forças militares cumprem a função de exercer e legitimar o uso da força em nome da ordem estabelecida e, nesse contexto, são instrumentalizadas para cumprir uma finalidade educacional que lhes é estranha.
Durante a pesquisa, analisei as resoluções, guias e orientações oficiais destinadas aos militares que atuam nos Colégios Cívico-Militares no Paraná. O que encontrei foram alguns poucos documentos vagos e genéricos, com ênfase em práticas militares, entretanto com pouquíssimas ou quase nenhuma orientação sobre atuação no cotidiano escolar, sobretudo no trato com crianças e adolescentes, nas dinâmicas pedagógicas e nos princípios educacionais.
Essa lacuna revela um despreparo institucional grave por parte da Secretaria de Estado da Educação, que não oferece formação adequada aos militares designados para funções educativas. Não por acaso, vieram à tona diversos casos denunciados por comunidades escolares e pela imprensa, envolvendo posturas autoritárias, constrangimentos e até situações de violência física e psicológica dentro dos colégios.
Vale destacar a dificuldade enfrentada durante a pesquisa no acesso às documentações oficiais. Muitos documentos foram encontrados após buscas intensas, e não raro, arquivos publicados em portais institucionais “desapareciam” ou ficavam inacessíveis pouco tempo depois. Essa instabilidade e opacidade também fazem parte de uma política de controle da informação, que compromete a transparência da gestão pública.
APP-Sindicato: O currículo e os documentos normativos impõem valores neoliberais e neoconservadores?
Italo Zanelato: Sim. Tanto o currículo quanto os documentos normativos dos Colégios Cívico-Militares apresentam e impõem valores alinhados às ideologias neoliberais e neoconservadoras. Ao desenvolver práticas pedagógicas que privilegiam a disciplina, a obediência, o respeito incondicional à hierarquia e a negação do contraditório, essas diretrizes acabam por formar um sujeito dócil, alguém que se adapta às regras, que evita conflitos e que não questiona a ordem social posta.
Esse sujeito, moldado a partir da lógica da submissão e do controle, corresponde exatamente ao perfil desejado pelo mercado: um trabalhador disciplinado, acrítico e funcional, que aceita condições precárias de trabalho sem resistência. Do ponto de vista neoliberal, a educação é vista como investimento individual, e o aluno como capital humano a ser formado para a produtividade. Já do ponto de vista neoconservador, o ideal é a manutenção da ordem, da autoridade e dos valores morais tradicionais, o que se traduz na escola pela valorização do “civismo” e da “família”, em detrimento da crítica social e da pluralidade de ideias.
Portanto, o currículo e os documentos normativos dos CCM não são neutros. Eles operam como instrumentos ideológicos que contribuem para a reprodução das desigualdades sociais, ao passo que esvaziam o papel emancipador da educação pública.
APP-Sindicato: Um dos objetivos do trabalho é examinar práticas pedagógicas e de gestão e seus impactos na subjetivação dos alunos. O que constatou em relação a isso?
Italo Zanelato: A pesquisa constatou que, apesar de os Colégios Cívico-Militares serem promovidos por discursos oficiais como solução para problemas de disciplina, violência e de qualidade da educação, na prática eles reproduzem e aprofundam lógicas autoritárias, tanto na gestão quanto nas práticas pedagógicas. Essa estrutura produz impactos significativos na formação subjetiva dos alunos.
O modelo implantado reforça hierarquias rígidas, naturaliza a obediência e desestimula o pensamento crítico. A disciplina não é construída de forma dialógica ou pedagógica, mas imposta por mecanismos de controle externo ao processo educativo, como fiscalizações, punições e vigilância constante. Isso contribui para a formação de sujeitos que se ajustam a ordens preestabelecidas, internalizando valores de subordinação e docilidade.
Do ponto de vista pedagógico, prevalece uma visão instrumental da educação, voltada à produtividade, ao comportamento “adequado” e à adaptação ao mercado. A subjetividade do aluno é moldada não para a autonomia, mas para o conformismo. Em vez de formar cidadãos críticos e participativos, os Colégios Cívicos-Militares formam sujeitos que se reconhecem como parte de uma engrenagem funcional, o que atende diretamente aos interesses do capital e da manutenção da ordem estabelecida pelo Estado.
Assim, o processo de subjetivação promovido nesses colégios é profundamente marcado por uma racionalidade neoliberal e neoconservadora, que mina os princípios de uma educação democrática, emancipadora e plural.
APP-Sindicato: O site da APP-Sindicato foi fonte de consulta na pesquisa?
Italo Zanelato: Sim. A pesquisa teve como um de seus objetivos centrais a contraposição ao discurso oficial do Estado do Paraná, amplamente divulgado por meio da Agência Estadual de Notícias (AEN), que atua como um instrumento de legitimação das políticas governamentais. Nesse sentido, o site da APP-Sindicato foi utilizado como fonte complementar, especialmente por meio de reportagens, denúncias e relatos que trazem à tona aspectos omitidos ou distorcidos pela mídia oficial.
A APP-Sindicato tem exercido um papel fundamental na visibilização das contradições vividas no cotidiano das escolas públicas do Paraná, funcionando como um dos poucos canais de resistência e denúncia frente ao discurso ideológico do governo. Ao compartilhar experiências reais de educadores, estudantes e comunidades escolares, o Sindicato contribui para a construção de uma narrativa mais fiel à realidade e, por isso, foi considerado uma fonte relevante para a análise crítica da implantação dos Colégios Cívico-Militares no estado.
APP-Sindicato: É possível resistir à implantação arbitrária desse modelo? Como?
Italo Zanelato: Sim, é possível resistir e essa resistência passa, sobretudo, pela conscientização crítica das comunidades escolares. Pais, estudantes, professores e funcionários precisam estar cientes de que possuem o direito de discutir, debater e decidir coletivamente sobre o modelo pedagógico de suas escolas. A gestão democrática da educação pública pressupõe o diálogo e a escuta, não a imposição de políticas verticalizadas.
O modelo cívico-militar, ao ser implementado de forma arbitrária ou sob processos legitimados por uma “consulta pública” acelerada, fragiliza esse direito. Muitas comunidades sequer compreenderam completamente o que estava sendo proposto. E reforço, sem debate, não há democracia. Por isso, o fortalecimento da participação social, da atuação sindical, dos grêmios estudantis e dos conselhos escolares é essencial para resistir a esse processo.
E cabe aqui uma reflexão crucial: se a escola ensina o aluno a apenas obedecer, a cumprir ordens e a aceitar hierarquias sem questionamento, que tipo de prática democrática se espera desse futuro cidadão? A resistência, portanto, não é apenas uma reação pontual à militarização, mas um movimento contínuo de afirmação de uma educação pública, crítica, laica, plural e verdadeiramente democrática.
APP-Sindicato: Qual é a conclusão do trabalho?
Italo Zanelato: O trabalho aponta que o modelo dos Colégios Cívico-Militares não resolve os principais desafios da escola pública. A militarização da educação, longe de ser uma inovação, representa a continuidade de lógicas autoritárias e excludentes no interior da escola pública. O que se observa é a intensificação de processos de controle, disciplina e padronização comportamental, alinhados a projetos que priorizam o desempenho e a ordem em detrimento da formação integral do sujeito.
A pesquisa reforça a importância de uma escola que promova a autonomia, a reflexão e a participação ativa da comunidade escolar, elementos fundamentais para uma educação verdadeiramente pública, democrática e transformadora.
Para quem deseja compreender mais e verificar meus resultados convido para assistir a defesa pública da minha tese que ocorrerá no dia 28 de junho de 2025, na Universidade Estadual de Maringá, às 9 horas da manhã.
