VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTIL: Os dados estão aqui, para quem quiser ver


Crianças e jovens estão cada vez mais conectados pelas mídias sociais, o que representa um risco em potencial

Publicado: 04/08/2022 18:44 | Última modificação: 04/08/2022 18:44

Escrito por: LUCIANA TEMER/Advogada, professora da PUCSP e Diretora Presidente do Instituto Liberta

Reprodução

Levantar, analisar e refletir sobre os dados de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil é urgente. Aliás, é urgente há muito tempo. Desde 2019, quando pela primeira vez o Fórum Brasileiro de Segurança Pública conseguiu separar os dados do crime de estupro do crime de estupro de vulnerável, pudemos enxergar que 53,8% desta violência era contra meninas com menos de 13 anos. Esse número sobe para 57,9% em 2020 e 58,8% em 2021.

De 2020 para 2021 observa-se um discreto aumento no número de registros de estupro, que passou de 14.744 para 14.921. Já no que tange ao estupro de vulnerável, esse número sobe de 43.427 para 45.994, sendo que, destes, 35.735, ou seja, 61,3%, foram cometidos contra meninas menores de 13 anos (um total de 35.735 vítimas).

Comecemos pelo crime com dados mais significativos: o estupro de vulnerável. Nossa primeira constatação é de que há ainda uma certa incompreensão em relação à importância de separarmos os registros de estupro de vulnerável dos demais. Tanto é que, dos 66.020 boletins de ocorrência analisados, havia 6.874 que constavam apenas como estupro, apesar de as vítimas terem menos de 13 anos. Esse problema se mostrou especialmente sério no Estado do Paraná, onde não se registra esse crime de forma específica e as 4.631 ocorrências envolvendo menores de 13 anos precisaram ser identificadas uma a uma.

Quanto à característica do criminoso, essa continua a mesma: homem (95,4%) e conhecido da vítima (82,5%), sendo que 40,8% eram pais ou padrastos; 37,2% irmãos, primos ou outro parente e 8,7% avós.

O local da violência também permanece o mesmo: 76,5% dos estupros acontecem dentro de casa. Aqui chamo a atenção para algo que temos defendido constantemente, que é a escola como elemento estratégico fundamental para o enfrentamento do estupro de vulnerável. Isso nos parece muito claro diante da informação que essa violência é preponderantemente intrafamiliar e ocorre dentro de casa. Sabemos que o enfrentamento de violências não se dá apenas no âmbito da segurança pública e acreditamos que esse é um exemplo típico disso. A escola pode ajudar (e já ajuda) no processo de identificação e denuncia, mas, sobretudo, no processo de prevenção. Muitas vezes o abusador se aproveita da ignorância da criança e, se ela tiver consciência, dependendo da situação, pode mesmo evitar que o abuso ocorra. Fica aqui uma sugestão: não sabemos quantas denúncias de violência sexual chegam por meio da escola e seria muito interessante ter esse dado. Fui Delegada de Polícia e boa parte das denúncias tinha essa origem. Para aqueles que acham que o ambiente escolar é um risco para os filhos, vale aqui lembrar que apenas 1% dos casos registrados ocorreu em estabelecimento de ensino.

Quanto a cor/raça, a maioria dos registros é de meninas brancas (49,7%), seguido de negras (49,4%), amarelas (0,5%) e indígenas (0,4%). Esse dado sobre meninas negras serem menos violadas que brancas sempre me provoca, porque não é essa a percepção que temos. O estudo Percepções sobre direito ao aborto em caso de estupro, realizado e publicado pelos institutos Locomotiva e Patrícia Galvão neste ano, entrevistou 2 mil pessoas, das quais 57% acreditam que mulheres e meninas negras são as maiores vítimas de violência sexual no Brasil. Nós sabemos que mulheres negras são as principais vítimas de violência doméstica e feminicídio. Eu me pergunto se não estamos diante de um dado que nos fala de uma maior subnotificação de estupro de vulnerável de meninas negras em relação às brancas…mas essa é apenas uma suposição.

Em relação ao sexo da vítima, 85,5% são meninas, mas meninos também são vítimas. Interessante aqui observar que o número de registros aumenta conforme a menina vai crescendo. Já no caso dos meninos, o número de registros aumenta até os 6 anos (com pico entre 4 e 6) e depois começa um processo de queda. Penso aqui em duas hipóteses: a primeira é de que, em um país machista como o nosso, os meninos vão sendo mais respeitados conforme crescem e deixam de ser objeto dessa violência; a segunda é de que, justamente por sermos um país machista, os meninos, por constrangimento, denunciam ainda menos que as meninas as violências sexuais que sofrem.

Vamos agora falar do enorme desafio que é tratar da exploração sexual de crianças e adolescentes. Não é o primeiro ano que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública levanta os dados desse crime, mas é a primeira vez que ele será publicado no Anuário. Se olharmos para o número de registros, 733 casos em 2021 e 683 em 2020, nem parece ser um problema que requeira maior atenção. Mas, na verdade, o que esse dado explicita é o imenso descaso com que esse crime é tratado pela sociedade.

Um mapeamento feito em 2020 pela Polícia Rodoviária Federal com a Childhood Brasil aponta que, só nas rodovias federais, há 3.651 pontos de exploração sexual infantil, e só temos 733 notícias desse crime? Alguém realmente acredita que, durante todo o ano de 2021, só houve 1 caso de exploração sexual no Distrito Federal, 2 casos no Amapá e Roraima e 3 casos no Acre e na Paraíba? Talvez a explicação para essa baixa notificação possa vir de uma pesquisa de 2018 encomendada pelo Instituto Liberta para o DataFolha sobre a percepção da sociedade a respeito da exploração sexual de crianças e adolescentes. 100% dos entrevistados sabiam que era crime pagar por sexo para alguém com menos de 18 anos, mas do universo de pessoas que já tinha visto ou sabia de uma situação dessa, apenas 29% denunciaram, porque, nesses casos, a tendência é culpabilizar a menina pela violência sofrida.

Em relação aos registros criminais de pornografia infanto-juvenil, foram 1.797 em 2021 contra 1.767 em 2020. Muito importante falar dessa violência que, infelizmente, tende a crescer. Por isso é fundamental que todos se atualizem e estejam atentos a esses crimes. No Estado do Espírito Santo, por exemplo, essa categoria não existe no sistema eletrônico que reúne os Boletins de Ocorrência, o que deve ser modificado o mais rápido possível.

O fato é que crianças e jovens estão cada vez mais conectados pelas mídias sociais, o que representa um risco em potencial. Se sabemos que a conexão pela internet é uma realidade que está e tende a estar cada vez mais presente, precisamos falar com as crianças e os adolescentes sobre os perigos e riscos. Mas falar de verdade! E aqui, de novo, a escola tem um papel fundamental. Muitas vezes os pais não estão preparados para esta conversa, mas a escola tem que estar. Escolas públicas e privadas, pois crianças e adolescentes de todas as classes sociais estão sujeitas a esses crimes.

De novo se verifica o fenômeno do crescimento de registros conforme aumenta a faixa etária da vítima. Temos uma maior concentração na faixa dos 10 aos 14 anos, com 990 casos, seguida de 15 a 17, com 523.

Quando olhamos para os dados dessas violências e comparamos 2020 e 2021 separadamente por Estados, verificamos que alguns tiveram aumento nos registros, outros, diminuição. No entanto, a situação do Mato Grosso do Sul se destaca pela alta taxa de registro de estupro de vulnerável: 73 casos por cada 100 mil habitantes, seguido por Roraima com 64,8 e o Acre com 50,6.

Também nos casos de exploração sexual e crimes de pornografia os números do Mato Grosso do Sul chamam nossa atenção. No primeiro caso a taxa de registro por 100 mil habitantes da faixa etária respectiva chega a 24 para adolescentes entre 15 e 17 anos e 15,2 para vítimas entre 10 e 14 anos, bem maior que a média dos outros Estados. E no segundo, apesar de São Paulo em números absolutos ser de longe o Estado com mais registros, quando olhamos para a taxa de ocorrência vemos que, de novo, o Mato Grosso do Sul, com uma taxa de 16,4 por 100 mil habitantes na faixa etária de 0 a 17 anos, contra 2,4 de São Paulo.

Olhando os números, a situação do Mato Grosso do Sul é preocupante, mas meu otimismo não resiste a uma provocação: será que eles não estão, na verdade, fazendo um ótimo trabalho de registro e vencendo a subnotificação de forma mais eficiente que os demais? Faço esse comentário porque frequentemente me perguntam se a violência sexual contra crianças e adolescentes está aumentando, já que os dados apontam para isso. Sempre respondo que não sei, mas que acredito que o aumento de registros no caso desses crimes é um bom sinal, pois me parece que o que está aumentando é a notificação, não o crime em si. Estamos conseguindo tirá-los da invisibilidade.

Enfim, fala-se muito de falta de dados, de subnotificação, o que é mesmo uma realidade, mas o fato é que esse dado – mais de 4 meninas de menos de 13 anos estupradas por hora no Brasil – existe. Por que não estamos falando disso cotidianamente?

Trata-se de uma violência estrutural, que precisa entrar na pauta da sociedade. Nós, adultos, precisamos romper o silêncio, pois só as nossas vozes serão capazes de provocar consciência e impulsionar a discussão para construção de políticas públicas capazes de mudar esta realidade.

Texto em versão condensada. Para obter a versão originalmente publicada no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, acesse: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/10-anuario-2022-feminicidios-caem-mas-outras-formas-de-violencia-contra-meninas-e-mulheres-crescem-em-2021.pdf