Quando o currículo da escola pública inclui a disciplina “só é pobre quem quer”
Meritocracia e aporofobia chegam ao ensino médio para acirrar isto. A educadora Madalena Peixoto explica seus efeitos.
Publicado: 14/03/2023 11:42 | Última modificação: 14/03/2023 11:42
Escrito por: Por Victor Nunes /Diário do Centro do Mundo
Em fevereiro, a Secretaria de Educação do Estado do Paraná foi atropelada por um escândalo nacional ao “vazar” material didático justificando a pobreza a partir de conceitos de auto-ajuda. Uma plataforma digital destinada a preparar professores de “educação financeira” incluiu um gráfico polêmico baseado no livro “Os Segredos da Mente Milionária”, do coach (treinador) motivacional, T. Harv Eker.
Já que disciplinas como filosofia e história deixaram de estar na base curricular, surgiram opcionais para as crianças. Desta forma, o curso de educação financeira ensina crianças de 6a. série do ensino público, a maioria pobre, como ter uma mentalidade de rico. O material foi acusado de estimular a discriminação de pessoas pobres, fazendo o governo repudiar o conteúdo e retirá-lo da plataforma.
No entanto, algumas semanas depois, o Diário Oficial mostra que a Secretaria da Educação do Paraná decidiu pagar R$ 285 mil por cinco títulos de livros de autoajuda e do “empreendedorismo” para bibliotecas das escolas. A leva de livros anunciada pelo governo inclui 1.480 exemplares de “O poder do hábito”, de Charles Duhigg e mais 1.480 de “A mente do empreendedor”.
A lista segue ainda com títulos como “O que o jovem quer da vida?: Como pais e professores podem orientar e motivar os adolescentes”; “Amor pelas coisas imperfeitas: Como aceitar a si mesmo num mundo em busca de perfeição”; e “Gestão educacional transformadora: Guia sobre intraempreendedorismo, estratégia e inovação”.
O Portal Vermelho entrevistou a coordenadora da secretária-geral da Confederação Nacional dos trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), Madalena Guasco Peixoto, para explicar as consequências desse conteúdo na educação infantil. Madalena também é diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP.
Meritocracia e salve-se quem puder
Segundo ela, o material reforça a culpabilização do indivíduo pela própria pobreza, a partir de uma lógica meritocrática, tão ao gosto dos coachs motivacionais que povoam as redes sociais e os best sellers de livrarias. De acordo com esta visão, a pobreza seria resultado de uma mentalidade (mindset) pobre (e, portanto, inadequada) e não dos fatores enraizados na sociedade brasileira que perpetuam a pobreza e a desigualdade ao longo das gerações.
Com a força da ideologia, – que ressalta o que interessa e esconde o que não contribui com sua lógica -, a tal “mente milionária” ignora o contexto familiar, sexo e gênero, raça e grupo étnico, local de nascimento etc, para dizer que qualquer um pode ser rico se seguir sua receita. Esta distorção da realidade é o que sempre se critica em livros de autoajuda, pseudopsicológicos e pseudocientíficos, que enfatizam o que justifica seus argumentos e escondem o que nega.
Assim, a disciplina que poderia ter um papel na orientação de crianças para compreender o mundo financeiro, o valor dos produtos em relação ao trabalho da família, os efeitos do consumismo, da gratuidade, da poupança e da filantropia; vai muito além, justificando uma ideologia de meritocracia e ultraliberalismo adequada a tempos de crise do capitalismo.
Depois que se instaurou a Base Nacional Comum Curricular, Madalena explica que vários itinerários formativos, disciplinas e conteúdos que estão ligados a meritocracia foram incorporados ao ensino. Como outras disciplinas deixaram de ser obrigatórias, ela explica que o professor de Geografia, por exemplo, é chamado a lecionar Educação Financeira, mesmo sem formação para isso. “Muitas escolas públicas não têm mais curso de História, Biologia, Geografia. A escola cria um itinerário formativo que não inclui essas disciplinas como opção. As disciplinas críticas vão sendo substituídas por esse conteúdo ultraliberal, que vai ganhando protagonismo na educação”, explica.
Como educadora e sindicalista, Madalena critica o suposto caráter facultativo para o professor em relação a estes conteúdos, como alegou a gestão paranaense. “Como Geografia caiu, aquele professor agora tem que oferecer educação financeira, por meio da formação nessas plataformas de ensino remoto. O professor de Biologia é avisado que está sem aula, mas que pode entrar numa plataforma que ajuda a preparar aula de Educação Financeira. Não se trata mais de disciplina facultativa como eles defendem, mas de uma obrigatoriedade, principalmente para o professor que quer sobreviver”.
Ela considera um agravante estas plataformas serem ligadas a empresas de capital aberto para formação de professores, como é o caso da Fundação Lemann, ligada ao bilionário Jorge Paulo Lemann, recentemente envolvido em escândalos de fraude contábil nas Lojas Americanas. “Além de tudo, o estado paga para que os professores tenham acesso a esse conteúdo digital”.
A retirada do Estado
“Quando se introduz no currículo uma visão de meritocracia, é porque a sociedade não tem mais compromisso com o bem-estar de todos. O estado, que é quem se importa com o direito universal e a qualidade de vida da sua população, se retira”, diz Madalena.
Em momentos de crises econômicas provocadas pela especulação financeiro dos mais ricos, ou em momentos como a pandemia, por exemplo, os pobres tendem a cair na miserabilidade e os ricos, ficarem bilionários. Assim, o “apertem os cintos”, “agora não é hora de reivindicar nada”, “estamos todos no mesmo barco”, “precisamos cortar na carne para sairmos da crise e todos voltarem a ganhar”, é dessas retóricas distorcidas, que repercutem fortemente na sociedade. No final, se percebe que alguns estavam em barcos muito melhores.
Na mentalidade rica, Madalena observa que o cidadão não culpa ninguém por seus problemas. “Não exige nada ao Estado”. Está mais para uma mentalidade submissa e sem senso crítico, do que para uma mentalidade de rico. Principalmente, quando o noticiário mostra os ricos envolvidos em corrupção e fraude contábil, entre outros crimes piores, que nada têm a ver com meritocracia.
A realidade meritocrática esconde a questão dos impostos pagos para oferecerem os serviços universais. Quem teria que se preocupar com o que fazer com essa tributação é o sistema financeiro, e não o trabalhador, parecem dizer. Apenas atribuir as desigualdades existentes ao Estado negligente, no entanto, retira a responsabilidade das elites e suas pressões sobre o poder.
A educadora diz que isso está relacionado com as justificativas para a retirada dos direitos trabalhistas. A concepção do emprego desregulado, em que você não recebe nada do estado, mas pode ser um vencedor, se tiver méritos para isso e souber conduzir sua carreira com esforço e otimismo.
Um emprego que exige essa concepção e está no centro dos debates atuais é a do entregador de aplicativo, que não dispõe sequer de acesso a banheiro ou alimentação durante seu expediente. Muito menos de seguro de saúde, expectativa de aposentadoria ou folgas remuneradas. Mas o entregador de bicicleta é estimulado a acreditar que, a depender de seu esforço, pode ser promovido a entregador de moto, que pode vir a se tornar um motorista de carro. Uma falácia que cada vez ganha menos adeptos na realidade.
“A meritocracia entra no currículo ao ensinar que, se você é merecedor e batalhar, quanto mais você se esforçar e lutar pelo que quer, você vai se dar bem na vida”, resume. Madalena lembra que esta é uma vertente educacional daquilo que já conhecemos como teologia da prosperidade, difundida nas igrejas eletrônicas, que defendem que, quanto mais você doar para o telepastor, crer que Deus vai te ajudar, você vai ser ajudado.
“É uma forma religiosa de transformar a visão da meritocracia. Esta é uma visão que entra não só na escola, mas em toda a sociedade. Uma concepção do salve-se quem puder, e só se salva quem se esforçar muito”, diz ela.
Aporofobia e sociedade de classes
Além da concepção de meritocracia, Madalena ressalta que este material estimula a aporofobia, ou seja, o desprezo pela pessoa que é pobre. “É um conteúdo discriminatório da pessoa pobre, como alguém que merece ser discriminada. A pessoa não é pobre porque quer, ou porque tem mentalidade de pobre. É pobre porque não tem direitos garantidos, não tem emprego, não tem moradia. Há comprovação suficiente de que a ascensão social dos mais pobres se dá por meio de políticas públicas”, diz a educadora.
Um darwinismo social em que a pessoa é pobre porque merece ser pobre (ou até trabalhar em condições análogas à escravidão), e, portanto, merece ser excluída. Algo que justifica a exclusão, a exploração sem dó dessa pessoa, porque considera que ela não quer ser rica.
Madalena menciona que, depois da Segunda Guerra Mundial, mesmo o capitalismo se tornou um liberalismo de estado de bem-estar-social, com principio básico do estado de direito universal. Os direitos universais, então, são a saúde, a educação, o trabalho regulado, a previdência, entre outros. No entanto, desde os anos 1970, com uma profunda crise especulativa, o neoliberalismo ganha terreno na economia, e nas mentalidades.
“O neoliberalismo diz que isso não é mais direito, mas serviço. Primeiro privatiza e oferece o serviço pago pelo Estado a partir da arrecadação de impostos. Com o ultraliberalismo surgido das crises capitalistas, isso se radicaliza para a ideia de que o Estado não precisa sequer gastar dinheiro com isso”, afirma.
Por trás dessa mentalidade, analisa a sindicalista, está a ideia de que Bolsa Família faz as pessoas terem mais filhos e nada mais. “Se o estado garante direitos sociais, o cara vira um vagabundo, assim como o trabalho regulado pela Consolidação das Leis Trabalhistas [CLT], a estabilidade no emprego. É uma concepção que, junto com a meritocracia, diz que o pobre o é porque quer, e porque é acomodado”, resume.
Uma ideologia que considera que todos têm as mesmas oportunidades, inclusive os milhões que nascem nas favelas, sequer têm moradia digna com saneamento e serviços básicos urbanos, sem acesso à transporte público e educação de qualidade, trabalhando num emprego de salário mínimo, sem direitos previdenciários, e cuja a única presença do estado em seu bairro é a repressão da Segurança Pública. “Esta ideologia está dizendo que, se todos esses milhões de pessoas vivendo na miserabilidade tiverem mentalidade de rico, ou aprenderem a ter, elas serão ricas”.
Uma mentalidade que pressupõe que, com R$ 1.302 brutos ( o atual salário mínimo), o trabalhador terá dinheiro para poupar e investir na especulação financeira, como fazem os ricos, depois de separar os custos da moradia, transporte, saúde, educação, lazer, cesta básica, serviços de água, luz e internet, etc.
“O sistema se isenta de proteger seus trabalhadores para dizer que, se todos tiverem mentalidade de rico, todos serão ricos, como se isso fosse possível numa sociedade extremamente desigual”, afirma Madalena.
Uma concepção ideológica, conservadora, que não tem nada de novo e moderno, mas de velho e ultraliberal, à beira do escravismo. “O estado lava as mãos, e a criança vai apreender que se tiver mentalidade de rico não vai depender da ajuda do estado”.
Padrões de desigualdade no mundo
O ultraliberalismo é um fenômeno global. “A meritocracia que justifica a retirada do estado da proteção social é algo universal, encontrada no mundo todo”, enfatiza Madalena.
Em países ricos, com desigualdade menor e onde os salários são melhores, esta pedagogia da meritocracia encontra espaço, porque garante ascensão social mínima para muita gente. Em países extremamente desiguais como o Brasil, onde os salários são indigentes, desacompanhados de direitos trabalhistas mínimos, não haverá espaço para tantos ricos, como quer fazer parecer este discurso ideológico.
Mesmo nesses países desenvolvidos, com oferta de empregos bem remunerados, é sabido que pessoas com mentalidade de rico, que trabalham continuamente, sem tirar folgas, se sujeitando a todo tipo de assédio moral, acabam num colapso mental ou coisa pior, sem ter alcançado o mérito da riqueza. Ela será culpada por sua situação por ter focado nas metas erradas ou coisa que o valha.
Estimativas da OCDE, de 2018, mostram que países com forte presença do estado nas políticas públicas oferecem ascensão social mais rápida, enquanto os que não garantem direitos universais mínimos, atrasam a possibilidade de gerações de famílias alcançarem melhores salários e condições de vida.
O gráfico da OCDE, ao lado, é baseado em simulações e pretende ser ilustrativo. Ele estima quantas gerações demorariam hipoteticamente para que os filhos de uma família situada entre os 10% de menor rendimento alcançassem a renda média de seu país.
Não se refere ao tempo exato que uma pessoa vinda de família de baixa renda vai precisar para atingir a renda média. As estimativas são baseadas em ganhos continuados (elasticidades) de pais e filhos, assumindo elasticidades constantes.
Como se vê no gráfico, há bastante variação entre os países, mas em média demorariam entre quatro e cinco gerações para que isto ocorra. Ou seja, na maioria dos países, em média, se alguém pertence aos 10% mais pobres, apenas seu tataraneto alcançará a renda média daquele país.
O caso do Brasil é muito mais grave, pois seriam necessárias não cinco, mas nove gerações (quase o dobro) para que os filhos das famílias de baixa renda alcançassem a renda média da população. Isto quer dizer que, na imensa maioria dos casos, a posição social que uma pessoa ocupa é muito mais herdada do que “conquistada”, seja lá qual for sua “mentalidade”.
Mercado de trabalho discriminatório
Além disso, o próprio mercado de trabalho está longe de recompensar apenas o mérito, independentemente das origens sociais de uma pessoa. As chances de mulheres e negros no mercado de trabalho são muito piores do que as de brancos e homens, mesmo quando alcançam, a duras penas, níveis similares de escolaridade.
Há mecanismos persistentes e disseminados de discriminação e manutenção das desigualdades sociais. Mesmo que elas não existissem, as condições das oportunidades educacionais teriam que ser iguais para todos para que a meritocracia tivesse uma função na ascensão social. Mesmo em países ricos, é reconhecida a falta de investimento em escolas e infraestrutura de bairros pobres, comparada a bairros ricos.
Esses estereótipos transparecem na mídia por meio da desigualdade racial, por exemplo, na medida em que a maior parte da população pobre é negra. Desse modo, as pessoas negras são representadas na mídia com papéis secundários e subalternos.
A legitimação das desigualdades sociais também se expressa na importância dada à escola, mesmo com sua má qualidade naturalizada. Em São Paulo, por exemplo, um quarto das aulas dos itinerários no novo Ensino Médio não são dadas por falta de professores. Há dez anos não é realizado concurso para contratação de novos docentes. No entanto, falar sobre isso é considerado mentalidade de pobre.
O próprio Renato Feder, ex-secretário de Educação do Paraná, e atual secretário de Educação de São Paulo, que deixou um legado educacional de privatizações e escolas militares no PR, expressou claramente sua indisposição em relação à educação das crianças pobres na pandemia. Disse ele que queria todo mundo de câmera aberta nas aulas on-line, ignorando que a maioria estrondosa dos estudantes sequer tem acesso adequado à internet ou equipamentos tecnológicos.