Mesmo sendo 0,1% das escolas públicas, unidades cívico-militares têm orçamento triplicado


Valor passou de R$18 milhões para R$64 milhões, o dobro do previsto para o Novo Ensino Médio, e é um dez maiores orçamentos discricionários da educação básica

Publicado: 16/05/2022 11:21 | Última modificação: 16/05/2022 11:21

Escrito por: Bruno Alfano/O Globo

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Valor passou de R$18 milhões para R$64 milhões, o dobro do previsto para o Novo Ensino Médio, e é um dez maiores orçamentos discricionários da educação básica
Por Bruno Alfano — Rio de Janeiro

O Ministério da Educação (MEC) acelerou a implementação das escolas cívico-militares incrementando o orçamento do programa. Em 2022, mais do que triplicou o valor destinado ao projeto em relação a 2020: passou de R$ 18 milhões para R$ 64 milhões. Com isso, a vitrine do governo Bolsonaro na Educação está entre os dez maiores orçamentos discricionários (aquele na qual o ministro pode escolher para onde vai o dinheiro) da educação básica. As escolas cívico-militares ganharam o protagonismo nos últimos anos, mesmo representando apenas 0,1% das escolas públicas brasileiras.

Neste ano, por exemplo, o valor destinado a essas unidades é quase o dobro do que está previsto para a União gastar com o apoio ao desenvolvimento do Novo Ensino Médio (R$ 33 milhões) — que representa no momento um grande desafio para o ensino público. E dez vezes maior maior do que a verba disponível para o Caminho da Escola (R$ 6 milhões), voltado para a compra de veículos de transporte escolar para estados e municípios.

— Esse dinheiro seria muito mais bem gasto se fosse utilizado para a expansão do ensino médio integral no modelo de Pernambuco, por exemplo — defende a presidente do Todos Pela Educação, Priscila Cruz. — Essas escolas são bem geridas e têm clima propício para aprendizagem, custando entre a metade e um terço das cívico-militares. É um modelo mais econômico que funciona melhor, o que nos faz concluir de que a escolha do MEC é apenas ideológica. Não tem nada a ver com melhoria de aprendizagem.

O orçamento do MEC para apoio da expansão do tempo integral no ensino médio é de R$ 380 milhões este ano. No entanto, até agora, não foi empenhado nem um centavo. Enquanto isso, R$ 22 milhões dos R$ 64 milhões das cívico-militares já foram destinados.

O Brasil terminou 2021 com mais de 100 escolas aderindo ao programa federal de unidades cívico-militares e deve terminar 2022 com 216, segundo o MEC. A União não constrói escolas novas, mas implementa, nos colégios escolhidos pelos entes federativos, o modelo cívico-militar.

Nesse caso, o orçamento do MEC serve para pagar militares da reserva que atuam na escola ou investir na própria unidade: em laboratórios, na compra de equipamentos, no apoio a projetos, na manutenção, na infraestrutura escolar, na capacitação dos profissionais e na aquisição de uniformes e de material de consumo.

— O que poderia ser um ponto positivo, que é o incremento do número de pessoas trabalhando em educação, se perde. Isso porque os militares não entendem de escola — avalia Catarina Santos, professora da Universidade de Brasília (UnB) e uma das principais pesquisadoras de militarização das escolas brasileiras.

Função dos militares
A função dos militares nos colégios é de “monitores”. Na prática, segundo o documento de diretrizes das escolas, eles têm tarefas como desenvolver nos alunos um sentimento de pertencimento ao ambiente escolar, assegurar o cumprimento das normas e desenvolver o espírito cívico, “estimulando a prática dos valores e o culto aos símbolos nacionais, de maneira compatível com a idade dos alunos”.

De acordo com o site do programa, a Diretoria de Políticas para Escolas Cívico-Militares oferece capacitação aos militares que atuam nas escolas por meio de “reuniões com orientações técnicas e palestras sobre os princípios do Pecim, legislações da Educação e disponibiliza curso” a distância.

Ainda de acordo com as diretrizes, os alunos devem participar de uma breve formatura, dentro de cada turma, antes do início das aulas do dia letivo para receberem informes, desenvolverem algum aspecto do Projeto Valores e para terem seus uniformes verificados.

O responsável por colocar a turma em forma e a apresentar ao monitor é um estudante que funciona como líder da classe, com funções de alertar o professor, quando solicitado, sobre a aproximação do término da aula e informar sobre quaisquer ocorrências com o material da sala de aula, como carteiras, cestos, vidros, lâmpadas.

É recomendável ainda que, pelo menos uma vez por semana, ocorra uma formatura geral, com entoação de uma canção, hasteamento da Bandeira Nacional e desfile dos alunos.

Num desses eventos, em maio do ano passado, o diretor da Escola Cívico-Militar Carioca General Abreu, no Rocha, Zona Norte do Rio, afirmou: “Nós queremos e podemos, nós somos nós e o resto é o resto. Brasil acima de tudo. Abaixo de Deus. Esse é o nosso lema aqui na escola”. A fala foi acusada de “doutrinação” pelo sindicado de professores do Rio pela referência ao slogan do presidente Jair Bolsonaro (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”).

Já para a resolução de conflitos, as diretrizes afirmam que os militares, a pedido ou com a autorização dos docentes, agirão em atos de indisciplina.

— Esse é um modelo absolutamente ultrapassado, totalmente fora do contexto atual e das necessidades de formação no século XXI em que competências como autorregulação são essenciais. A criança deve aprender a controlar os seus comportamentos e a respeitar as regras do jogo da coletividade. Isso você desenvolve, não impõe — defende Priscila Cruz.

Regra para elogios
Mesmo sem formatura ou participação dos alunos, o hasteamento da Bandeira Nacional deve ser realizado diariamente. “Sempre que possível, por um aluno ou professor”, diz o texto. É recomendável também a realização de rondas pelos monitores, com a finalidade de verificar se alunos estão faltando a alguma atividade. Até os elogios estão regulados nas diretrizes. Segundo o documento, o ato é uma “prerrogativa do gestor competente” e “e aquele que não possui tal competência deverá reduzir a termo sua solicitação, constando os motivos e as circunstâncias que determinam a proposta”.

— O que mais me preocupa em qualquer escola militarizada é a perda da função essencial da formação que é respeitar o direito dos adolescentes no processo educativo. Ela funciona na base da hierarquia, não na base do debate e da construção de ideias — diz Catarina Santos. — Quando se militariza, quem não seguir a regra que mude. Isso tira a identidade da escola e traz o quartel.

A primeira versão dessas diretrizes foi produzida em 2020, ainda sob a gestão do ministro Abraham Weintraub. Ela determinava que o cabelo dos alunos deveria ser cortado “de modo a manter nítidos os contornos junto às orelhas e o pescoço” e a tonalidade deveria ser natural, assim como a das sobrancelhas, e sem adereços, quando uniformizados. A versão atualizada em 2021, já com Milton Ribeiro no cargo, derrubou as exigências.

Procurado, o MEC não respondeu aos questionamentos da reportagem. O modelo, no entanto, é defendido nas diretrizes como um conjunto de ações voltadas para a excelência nas áreas educacional, didático-pedagógica e administrativa. O modelo de ensino seria o mesmo dos Colégios Militares do Comando do Exército, das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares.

Experiências desde 1995
O Programa de Escolas Cívico-Militares (Pecim) foi o primeiro criado por um governo federal para levar militares para as escolas. No entanto, o Brasil já tem experiências estaduais desde 1994, com a Escola Estadual Brigadeiro João Camarão Telles Ribeiro, em Manaus, ligada à Polícia Militar, que iniciou suas atividades em 1994. Atualmente, são cerca de 400 no país fora do programa de Bolsonaro.

Numa delas, este mês, um sargento da PM ameaçou “arrebentar” um estudante de 14 anos dentro de uma sala durante um protesto na unidade contra a demissão de uma diretora. Quatro dias depois, o diretor da unidade, o tenente Aderivaldo Cardoso, que a assumiu há 50 dias, afirmou numa rede social que já havia sido registrada na escola “2.400 advertências (FO's), 14 ocorrências policiais militares diversas, dentre brigas, ameaças e apreensão de facas (05)”. Também afirmou que suspendeu mais de 15 alunos envolvidos em questões graves na escola.

— Nem toda rede do Distrito Federal deve ter aplicado tantas advertências no ano todo. Mas, na pedagogia do quartel, o sucesso do trabalho tem a ver com a disciplina. É a pedagogia do controle, da disciplina, hierarquia e obediência — observa a especialista da UnB.