Feminicídio. Juntando os cacos para seguir em frente


Com saudade, medo e sem amparo, órfãos do feminicídio gritam por justiça e apoio do Estado

Publicado: 14/03/2023 10:41 | Última modificação: 14/03/2023 10:41

Escrito por: Érica Aragão

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Ninguém está preparado para perder alguém, muito menos quando a morte é inesperadamente brutal. O luto é um processo muitas vezes insuperável, ainda mais quando a vida de algum ente querido é ceifada de forma violenta, cruel e sem contar com qualquer apoio do Estado ou da justiça. Esse é o sentimento que muitas filhas, irmãs e mães das vítimas de feminicídio relatam sobre a vida delas, após a perda de mulheres do seu círculo familiar.

Louise de Luca Gomes, do Paraná; Fernanda Lata, do Mato Grosso do Sul; Isabel Jorge da Silva; de São Paulo; e Cleides Silvia Cardoso Ribeiro, de Minas Gerais, são familiares de vítimas de feminicídio, que conversam com a reportagem da Revista Mátria e contaram histórias bem parecidas sobre o antes e o depois do assassinato de seus entes queridos. Todas elas ainda sofrem com o medo e a saudade, e deixam claro que há muito o que melhorar na Justiça. E, quanto ao Estado, elas também são unânimes em dizer que foram totalmente abandonadas.

“Eu cursei Direito e, no fim, descobri que não era para mim, mas eu cursei justamente para tentar entender as leis do país. A justiça do Brasil é muito falha, o que deixa a gente com medo de que ele (o assassino) apareça aqui em casa. Principalmente a minha irmã, que foi a pessoa que ele trancou e deixou dias sem comer. Ela tem muito medo que ele venha atrás dela para fazer mal para a gente”, afirma Louise, filha da professora Andrea de Luca, morta a facadas, em 2014, pelo então companheiro Sandro Luiz Ramos Araki, enquanto a filha, uma criança de apenas 10 anos, estava trancada no quarto ao lado em sua casa, em Ponta Grossa (PR).

Louise, que é a filha mais velha de Andrea, conta que Sandro foi condenado a 36 anos, sete meses e 15 dias de reclusão, mas que não ficou nem 10 anos preso e está no semiaberto. Ele já tinha passagem na polícia, por agressão e tentativa de homicídio, e foi condenado pelos crimes de extorsão qualificada, homicídio, furto qualificado e cárcere privado qualificado. Em 2014, a Lei do Feminicídio ainda não existia.

“A gente precisou de muito tratamento psicológico, principalmente a minha irmã, porque ela conviveu com tudo, mas nunca tivemos nenhum apoio do Estado”, explica Louise. “Fora o medo, né? Eu acabei me envolvendo com uma pessoa e eu tinha muito, muito medo. Então, os meus relacionamentos sempre foram à base disso. Sempre me pergunto: será que esse homem não vai me matar?”, desabafa.

Depois de quase oito anos da promulgação da Lei 13.104, de 9 de março de 2015, a chamada Lei do Feminicídio, o assassinato de mulheres em situação de violência doméstica e familiar, ou em razão do menosprezo ou discriminação à sua condição, aumentou no país. A lei alterou o Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, além de incluí-lo no rol dos crimes hediondos.

“Se ele tivesse sido enquadrado na lei do feminicídio, provavelmente, ele teria ido a júri popular. Sandro era agressivo só com mulheres. Ele já tentou matar outra mulher, mas os filhos dela acordaram, viram e deram várias facadas no pescoço dele também, mas ele não morreu. Os crimes que ele cometeu foram só contra mulher, ele nunca fez nada para homem”, afirma Louise.

A história se repete

Em novembro de 2001, uma pesquisa realizada pelo Instituto Patrícia Galvão e Locomotiva mostrou que 57% dos brasileiros conhecem alguma mulher que foi vítima de ameaça de morte pelo atual ou ex-parceiro e 37% conhecem uma mulher que sofreu tentativa ou foi vítima de feminicídio íntimo. A pesquisa "Percepções da população brasileira sobre feminicídio” ainda revelou que, para 90% dos entrevistados o local de maior risco de assassinato de mulheres é dentro de casa.

Embora as mulheres heterossexuais, as moradoras da cidade e das periferias, e as mulheres pobres e negras sejam percebidas como mais vulneráveis, a maioria da população entrevistada considerou que todos os grupos de mulheres correm o mesmo risco de feminicídio, segundo o estudo.

Em Minas Gerais, a professora Claudiane Silva Cardoso Ferreira já tinha se mudado de casa, com medo de ser morta, mas foi retirada de dentro de uma das salas de aula da escola em que trabalhava, sob a ameaça de um facão, pelo seu ex-namorado, Walisson Alvarenga Chaves. Segundo sua irmã, Cleides Silvia Cardoso Ribeiro, ninguém da família gostava de Walisson, que já tinha fama de violento e só esperou a oportunidade para mostrar sua verdadeira personalidade.

“Minha irmã saiu da casa onde morava, que ficava dentro do terreno da casa da minha mãe, e foi morar com ele, porque minha família não aceitava o relacionamento. Foi só ela se afastar da família que ele começou a ficar violento”, conta Cleidis. “Ela começou a notar esta outra face do Walisson. Depois de sofrer algumas violências e ter sido ameaçada inúmeras vezes, ela saiu da casa onde morava com ele, com ajuda do pai e um pastor, só com a roupa do corpo e alguns documentos. Depois disso ela nunca mais teve paz”, completa.

Ela diz que a irmã chegou a pedir medida protetiva, mas não adiantou. “Esta medida não serviu de nada para minha irmã. Ele continuou ameaçando e perseguindo ela. Claudiane ficava triste, chorava e escondia muita coisa da gente. Chegamos a falar para ela se mudar, mas Walisson disse que se ela se mudasse iria matar o meu pai e minha mãe. E foi assim até que um dia ele colocou a ameaça em prática. Ninguém escuta essas mulheres e eu já presenciei outros casos em que as mulheres morreram pela ausência do Estado e da Justiça” .

Claudiane foi encontrada a poucos metros da escola onde lecionava, com traumatismo craniano e, mesmo tendo sido socorrida, não resistiu aos ferimentos. A irmã conta que ela pulou de um carro em movimento, no qual tinha sido colocada à força pelo ex-companheiro. Ela não resistiu ao impacto e morreu em consequência da queda. Apesar dessa versão contada por Cleidis, os jornais locais disseram que a professora foi esfaqueada. Walisson foi a júri popular e condenado a 14 anos, mas antes ficou foragido e se escondeu durante dois dias no mato, sem uma casa abandonada. “Eu acho que se ela tivesse ficado no carro, ele levaria ela para essa casa, porque a gente encontrou áudios de ameaça dele dizendo que iria ‘fumaçar’ a minha irmã”, conta.

A professora da Região Metropolitana de Belo Horizonte deixou dois filhos, a mãe, o pai e irmãos, que ficaram chocados e abalados com tudo o que aconteceu. “Minha família toda ficou mal. Minha mãe, que já tinha problemas de saúde, piorou. Meu pai sentiu muito, porque ele era muito ligado a ela e logo faleceu . Acho que tudo isso tem a ver com a morte dela, lamenta Cleidis. “Os filhos dela ficaram com muito medo e o mais novo ficou desamparado, porque é dever do estado zelar e cuidar principalmente da criança, mas isso não aconteceu”, desabafa.

Arma diferente, mesma forma de matar

A maioria das mulheres vítimas de feminicídio em 2021, por exemplo, foi assassinada pelo atual ou ex-companheiro dentro de casa, segundo dados do 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Um estudo divulgado pelo Instituto Sou da Paz, em agosto de 2021 identificou que a arma de fogo foi o instrumento responsável por 51% das mortes de mulheres brasileiras entre 2000 e 2019.

Foi o caso da mãe da Fernanda, Angela Jorge, vítima de feminicídio no final de 2019, no centro de Três Lagoas (MS). Ela foi assassinada a tiros pelo ex-companheiro, Carlos Roberto Felipe, porque não queria mais continuar com o relacionamento. Ao que parece, o assassino confesso tinha ciúmes do bom relacionamento da vítima com o ex-marido, pai da filha mais nova de Angela, a Isabel.

“Mesmo minha mãe estando separada do meu padrasto, a relação deles sempre foi de muita amizade. Ele não saiu do sítio e sempre nos ajudava. Ele fazia as coisas para ela e estavam sempre juntos. E esse era o ciúme do Carlos, porque meu padrasto sempre foi muito presente nas nossas vidas”, explica Fernanda.

Segundo a filha, Angela vinha tentando se afastar de Carlos, porque o relacionamento dos dois estava começando a sufocá-la, mas ele exigia que ela continuasse. A vítima chegou a contar a pessoas próximas que tinha se arrependido de ter ficado com ele, porque ele não estava aceitando apenas a amizade.

O que dizem os autos

Conforme os autos, uma testemunha, a vítima e o réu, na companhia de amigos, estavam numa confraternização no Clube da Terceira Idade, onde inclusive eles se conheceram. Ângela foi ameaçada pelo ex-namorado e a testemunha decidiu levar a vítima até a casa. No momento em que estavam entrando no veículo para sair do local, Carlos abordou a vítima armado. A professora correu, sendo perseguida pelo ex que, em seguida, efetuou os disparos contra a vítima. Ele confessou o crime e foi autuado como feminicídio. Ele recebeu uma pena de 26 anos,10 dias e seis meses

Isabel, a filha mais nova de Ângela, disse que acha superimportante ele ter sido enquadrado como Feminicídio, mas que a Lei ainda é bem falha. “A lei ainda é muito frágil, em relação à proteção das mulheres, porque quantas mulheres você vê que têm medidas protetivas e, mesmo assim, acaba morrendo. É muita impunidade e muita demora no cumprimento das medidas. E não digo isso só pela minha mãe, mas por várias outras professoras e mulheres, que a gente fica sabendo que, mesmo com medidas judiciais, acabaram perdendo suas vidas”, enumera.

“A gente não tem que aceitar nenhum tipo de violência, seja ela física, verbal ou emocional”, reforça a irmã mais velha. “E se você sofre qualquer uma violência, pode chegar à violência física e até à morte. Então, tem que tomar muito cuidado. A gente acha que ninguém tem coragem, mas a gente nunca sabe o que pode esperar do ser humano”, completa Fernanda.

Ela ainda faz questão de frisar que não contou qualquer ajuda do Estado, após a morte da mãe. “Não tivemos nenhum respaldo de ninguém para ajudar, a não ser os nossos familiares. Eu e meus irmãos fazemos terapia até hoje. É uma luta diária, com dor e saudade”, desabafa.

Podia ser diferente

As mulheres, em sua grande maioria, reconhecem a importância do Estado, enquanto muitos homens sabem que isso é um crime, mas acreditam que não serão punidos.
Segundo o relatório da pesquisa ‘Redes de apoio e saídas institucionais para mulheres em situação de violência doméstica no Brasil’, do Instituto Patrícia Galvão/Ipec, com apoio do Instituto Beja, realizada em novembro de 2022, a população reconhece a importância das políticas públicas e aprova a ampliação dos serviços especializados e a qualificação do atendimento às mulheres. E há uma ampla aprovação sobre diversas medidas, para melhorar o atendimento às mulheres em situação de violência doméstica, como mostra a figura abaixo:

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