O capítulo da história brasileira relacionado ao Período Regencial, ainda possui algumas terminologias associadas ao costumeiro preconceito de nossas elites em relação a população pobre, negra e mestiça, pois, sempre que os movimentos sociais de contestação do poder, foram liderados por brancos ou indivíduos pertencentes a elite, geralmente, foram nomeados de revolução, ao passo que, quando negros, pobres e mestiços, estavam no comando destes movimentos, a historiografia consagrada, acabou por nomeá-los como revoltas.
Infelizmente, existe uma longa tradição de manuais didáticos, considerando a Balaiada e a Cabanagem, como simples revoltas, já a rebelião armada ocorrida no Sul do Império, por outro lado, vem sendo evidenciada com o pomposo nome de Revolução Farroupilha, ou seja, enquanto esta última é caracterizada como uma audaciosa contestação das estruturas socioeconômicas injustas do Império, as primeiras, são consideradas apenas como ações intempestiva e irrequietas de rebeldes sem causa.
Interessante notar que, a rebelião liderada por escravos muçulmanos, alfabetizados em árabe, ocorrida no ano de 1835, na cidade de Salvador, além de ser esquecida pela historiografia consagrada por um longo tempo, também foi nomeada apenas de Revolta dos Malês, em função da origem étnica de seus líderes e seguidores.
A impressão que se tem, é de que apenas as rebeliões do Sul, tinham algum ideal contestatório, capaz de fazer efetivas críticas ao domínio injusto e centralizador do Império Brasileiro, quando na verdade, estavam defendendo sobretudo os interesses dos grandes produtores de charque, que, viram seus lucros serem significativamente diminuídos em função do aumento das tarifas de impostos sobre o charque exportando para região sudeste, onde também estava a corte do Império.
Em muitos aspectos os conflitos armados da Balaiada e Cabanagem, apresentam um caráter mias contestador da ordem social, do que a suposta Revolução Farroupilha, afinal, os principais líderes da Balaiada e da Cabanagem, não pertenciam as elites e, ainda, defendiam até alguma mudança na estrutura social, como o fim da escravidão, assim, tentando ampliar as possibilidades de uma maior aderência das camadas mais pobres nas lutas armadas, inclusive, dos próprios escravizados.
Por tudo isto, nomear todas estas guerras com o nome genérico de revolta, é fazer pouco caso da diversidade sociocultural do vasto território do Império Brasileiro e, principalmente não perceber, a capacidade das camadas mais pobres, negras e mestiças, de contestar as estruturas desiguais da sociedade imperial, a partir das várias guerras feitas contra os privilégios das elites regionais.
Na Província de Mato Grosso, por exemplo, no início do Período Regencial, houve um violento movimento de contestação dos privilégios das antigas elites mais vinculadas a um passado branco e português, denominado com o sugestivo nome de Rusga. No entanto, existe um grande silenciamento deste movimento de contestação nos livros e plataformas de ensino, não obstante, A Rusga ser um dos primeiros destes movimentos de contestação do Período Regencial, ocorrendo já em 1834.
Nosso principal objetivo neste pequeno ensaio não é apenas de fazer um revisionismo historiográfico maniqueísta, no qual a Revolução Farroupilha, seja considerada como mera ação interesseira e egoísta das elites sul-rio-grandenses, e os vários movimentos de contestação ocorridos, no que hoje chamamos de Norte, Nordeste e Centro-Oeste, sejam o exemplo categórico de genuínas revoluções, afinal, não existe um debate historiográfico pacificado, capaz de apontar os elementos definidores de uma verdadeira revolução, sem falar na dissidência historiográfica que chega até a suspeitar do próprio conceito de revolução.
Ao fim e ao cabo, o ideal seria matizar a análise e perceber as peculiaridades e contradições de cada um destes movimentos, por exemplo, na Revolta dos Malês, mesmo que já houvesse a ideia de se constituir uma sociedade islâmica na Bahia, chegando-se no limite, a se propor um – Gihad – Guerra Santa, portanto, não era apenas uma simples contestação dos privilégios da elite baiana, contudo, paradoxalmente, não tinham em último caso, o objetivo de acabar com a escravidão dos negros que não pertencia ao islamismo.
Ao se colocar em tela, certas contradições de alguns destes movimentos de contestação do Período Regencial e, sobretudo, pela própria natureza de um ensaio, ou seja, da necessidade de se fazer conjecturas generalizantes, é que podemos evidenciar a incompatibilidade do termo pejorativo de revolta, para se designar, movimentos de contestação de algumas das estruturas socioeconômicas injustas do Império e, ainda, evidenciar a Rusga, como um destes importantes movimentos de questionamento da tênue ordem estabelecida no Período Regência, principalmente, em manuais e plataformas didáticas, pagas com o dinheiro do cidadão de Mato Grosso, porque, valorizar a própria história, é o melhor exemplo de uma cidadania proativa.
Assim, em meio ao lucrativo e pouco republicano negócio da platafomização da educação em MT, ainda existe alguma esperança na capacidade criativa de nossos alunos! Porque, mesmo que exista a necessária deferência em relação ao trabalho do memorialista, Rubens de Mendonça, também, já é hora de haver um debate historiográfico mais pormenorizado sobre o movimento de contestação da Rusga, assim como de outros movimentos do Período Regencial.
Falo isto, em larga medida, em função das lembranças de leituras de textos do dileto amigo historiador, Odemar Leotte, seja a partir da escrita criativa de sua dissertação defendida na UNICAMP, hoje livro: Labirinto das Almas, seja do último e corajoso capítulo de sua tese: ”IHGMT: ARTE E ESCRITA NA NARRATIVA DO PASSADO, ” defendida na UNESP, que, aborda esta temática para além dos simples elementos historicistas convencionais. Assim, influenciado pelas leituras destes textos, solicitei aos alunos do 3 ano D, da E.E. ONZE DE MARÇO, localizada em Cáceres-MT, que buscassem estudar este importante episódio de nossa história, também a partir desta nova perspectiva histórica.
Todas estas atividades, tiveram o êxito de despertar nos alunos, a percepção de certo silenciamento da Rusga nos manuais didáticos em geral, produzido pelo PNLD – Plano Nacional do Livro Didático –. Inclusive, a Rusga também não aparece no Material Estruturado produzido pela FGV, mesmo que este, ironicamente, custe meio milhão aos cofres público de MT, enfim, pagamos por um material que não leva nossa própria história em conta.
Rubens Gomes Lacerda – Mestre em História pela UFMT.